Você já deve ter falado sobre a jornada do herói bem se não ouviu ainda já é a hora. A Jornada do Herói está em quase todas as histórias que consumimos. Desde a história de Jesus até Harry Potter. Nesse artigo vamos falar um pouco sobre ela e como se originou, assim como de que modo poderá refletir e aplicar em seu livro. E vamos falar também um pouco de estruturalismo.
Seguindo a linha original dos estruturalistas e baseado nos estudos de Vladimir Propp e Carl Jung, no final dos anos 40 o psicólogo Joseph Campbell realizou um profundo trabalho de análise de histórias mitológicas de diversos povos, com o intuito de chegar a um conjunto de elementos comuns a todas as histórias. O resultado foi o livro “O Herói de mil faces”, publicado em 1949, onde além de analisar o conjunto de arquétipos de personagens que aparecem nas histórias mitológicas analisadas, o autor propõe um conjunto de 17 passos comuns a todos os mitos, batizado por ele de “a jornada do herói mitológico”. O trabalho, apesar de muito interessante, é denso e de difícil absorção por quem não é da área de psicologia, e provavelmente seria pouco conhecido entre roteiristas e escritores se não fosse o trabalho de outro roteirista, Christopher Vogler.
Nos anos 80 Vogler era revisor de roteiros dos estúdios Disney, e ao conhecer o trabalho de Campbell achou que ele poderia ser utilizado para ajudar no trabalho de análise de validação de roteiros, indicando possíveis pontos de melhoria a partir de uma comparação do roteiro analisado com a jornada do herói de Campbell. Vogler resumiu suas observações em um guia de revisão de roteiros, que ele passou a utilizar em seus trabalhos e em palestras que dava sobre o assunto. O interesse despertado pelo seu trabalho foi grande, e deu origem ao livro “A Jornada do Escritor”, onde Vogler apresenta uma variação do trabalho de Campbell, com 12 passos para análise de roteiros e livros. A seguir apresentamos, de maneira bastante resumida, a estrutura da Jornada do Herói, conforme a adaptação sugerida por Christopher Vogler:
Ato 1 – Apresentação Mundo comum:
Neste ponto é apresentado o “herói”, o protagonista da história e seu status quo – geralmente, uma vida pacata e desinteressante. Chamado à aventura: Algo interrompe a rotina, oferecendo ao protagonista a chance de uma grande aventura. Esta aventura pode ser algo físico, ou simplesmente uma mudança de comportamento. Recusa ao chamado: O herói se recusa a atender o chamado, preferindo continuar na sua rotina. Encontro com o mentor: Todo herói precisa de um mentor, que irá primeiramente prepará-lo e encorajá-lo para a aventura; e posteriormente ajudá-lo em alguns momentos decisivos. Este mentor não precisa ser um personagem, podendo ser representado, por exemplo, por diversos personagens diferentes ou por situações que fazem o personagem refletir e superar seu medo da aventura e os posteriores obstáculos. Por exemplo, é Gandalf em “O senhor dos Anéis”, Obi-Wan-Kenobi em “Guerra nas Estrelas”, ou o senhor Myagi em “Karatê Kid”. Travessia do primeiro limiar: É o momento em que o herói dá o passo decisivo que o lança à aventura, mudando totalmente sua rotina e não tendo como voltar atrás. Esta travessia corresponde ao primeiro “ponto de virada” do “Manual de Roteiro” de Syd Field. Este passo pode ser espontâneo, por decisão própria do herói, ou forçado por falta de escolhas.
Ato 2 – Conflito Testes, aliados e inimigos:
Ao iniciar a aventura, o herói encontra aliados, enfrenta diversas provações e derrota vários inimigos. Este é o “desenvolvimento da trama” de Syd Field e usualmente é onde ocorre a maior parte da ação.
Aproximação do objetivo – segundo limiar:
A aproximação do objetivo corresponde ao momento da trama em que o herói se aproxima do quartel-general do inimigo, ou do segundo ponto de onde não haverá mais retorno. Como diversos outros pontos da estrutura da história, este “quartel-general” também pode ser metafórico, como por exemplo a aproximação do final de um prazo dado por terroristas para que determinada reivindicação fosse atendida. Este ponto, que corresponde ao segundo “ponto de virada” de Syd Field, marca o início de uma etapa mais tensão e de maior incerteza quanto ao sucesso da missão do herói. Provação suprema: É o clímax da história, quando as provações e a tensão chegam ao máximo. Estas provações podem ser físicas, onde o herói pode enfrentar a morte (e até mesmo morrer, para renascer em seguida), ou psicológicas, como a superação de um medo ou de uma limitação interna do protagonista. Recompensa: Após o clímax, tudo parece resolvido e o herói recebe sua recompensa – seja ela uma coisa física, como a descoberta do Santo Graal em “A Morte de Arthur” de Thomas Malory, ou uma recompensa psicológica, como a reconciliação com alguém ou, simplesmente, o repouso ao fim de uma guerra.
Ato 3 – Resolução
Caminho de volta: É o momento em que o herói retorna para casa, buscando a paz de sua rotina anterior. No entanto, enquanto ele retorna, um último desafio começa a aparecer, seja através de um ataque final das forças dos antagonistas, seja por uma última circunstância que irá provar se o herói efetivamente aprendeu uma lição com o conflito. Purificação: É o momento em que o herói passa por uma última provação, enfrentando seus últimos medos e provando que, realmente, todo o conflito por que passou o tornou uma pessoa melhor. Retorno com o prêmio: É quando o herói consegue finalmente retornar à sua origem, porém não
Purificação: É o momento em que o herói passa por uma última provação, enfrentando seus últimos medos e provando que, realmente, todo o conflito por que passou o tornou uma pessoa melhor. Retorno com o prêmio: É quando o herói consegue finalmente retornar à sua origem, porém não
Retorno com o prêmio: É quando o herói consegue finalmente retornar à sua origem, porém não ao status quo anterior, pois ele está modificado. O “prêmio” que ele traz poderá ser, novamente, algo físico como o Santo Graal, ou algo psicológico, como um título de nobreza ou simplesmente o fato de ter se tornado uma pessoa melhor. Vejamos o uso da Jornada do Herói exemplificada em um livro clássico, “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R.Tolkien:
Ato 1 – Apresentação
Mundo comum:
Frodo, um hobbit inquieto mas pouco afeito a aventuras, vivendo em seu Condado. Chamado à aventura: Bilbo, o tio de Frodo abandona a vila, deixando um anel misterioso.
Chamado à aventura:
Bilbo, o tio de Frodo abandona a vila, deixando um anel misterioso.
Recusa ao chamado:
Frodo esconde o anel, sem buscar descobrir o mistério que se esconde por trás dele. Encontro com o mentor: Gandalf aparece procurando pelo anel, e Frodo é apresentado à aventura que o espera.
Encontro com o mentor:
Gandalf aparece procurando pelo anel, e Frodo é apresentado à aventura que o espera. Travessia do primeiro limiar: Frodo se vê obrigado a sair do condado com o anel pois está sendo caçado pelos espectros dos antigos reis.
Travessia do primeiro limiar:
Frodo se vê obrigado a sair do condado com o anel pois está sendo caçado pelos espectros dos antigos reis.
Ato 2 – Conflito Testes, aliados e inimigos:
Em “O Senhor dos Anéis” esta etapa corresponde às centenas de páginas são apresentados novos aliados (como os elfos de Rivendell (ou ‘Valfenda’ nas traduções mais recentes), os ents, os cavaleiros e soldados de diversas cidades dos homens de um lado, e orcs, goblins, Saruman e outros inimigos do outro. Os aliados se separam, Gandalf é dado como morto, e a situação parece cada vez mais complicada, pois a cada desafio vencido outro maior se apresenta.
Aproximação do objetivo – segundo limiar:
Frodo e Sam conseguem entrar na fortaleza de Sauron, se aproximando do local onde podem destruir o anel. Provação suprema: Frodo “morre” nas garras de Laracna (uma aranha gigantesca), é resgatado depois por Sam e eles conseguem a duras penas chegar às Câmaras de Fogo para destruir o anel, após um último conflito com Gollum.
Recompensa:
Frodo e Sam são resgatados por Gandalf e pelas águias e despertam dias depois em meio a grandes honrarias dos exércitos que participaram da guerra do anel.
Ato 3 – Resolução Caminho de volta:
Frodo e Sam retornam ao condado, e cada aliado na aventura segue seu próprio caminho. Purificação: Frodo e Sam descobrem que o condado foi dominado por aliados de Sauron e que precisam enfrentar este perigo final sem os poderosos aliados que o ajudaram no resto do livro.
Retorno com o prêmio:
Em “O Senhor dos Anéis”, este é o momento da reconstrução, quando são usados presentes de Galadriel e as forças combinadas dos hobbits para reconstruir o Condado e depois quando Frodo parte junto com os elfos para além-mar, em uma nova jornada que pode representar sua ida para o paraíso. Obviamente, o exemplo acima é uma grande simplificação de uma trilogia de muitas centenas de páginas; mas nosso objetivo aqui é apenas apresentar um exemplo de uso da estrutura da “Jornada do Herói” para análise de um livro. Por mais interessante que seja, a “jornada do herói” ainda apresenta um certo viés, já que as histórias originalmente utilizadas na análise de Campbell são histórias épicas ou mitológicas, com a forte presença de um herói, o que torna a seu uso para análise de outros tipos de histórias menos natural – embora possível. Por exemplo, em filmes de comédia o “mentor” pode ser um amigo do solteirão que lhe dá conselhos (bons ou maus), a “aventura” pode ser o vizinho aceitar cuidar dos filhos da vizinha que precisa viajar por uma semana, o “prêmio” pode ser o amadurecimento do personagem, que abandona antigos preconceitos. Além disso, a Jornada do Herói foi criada como um instrumento para análise de textos, e o próprio Vogler ressalta o risco de, caso seja utilizada como um instrumento de criação, ela leve à criação de histórias ‘pasteurizadas’, sem originalidade. Haverá uma forma de evitar isso, uma estrutura tão genérica que oriente o autor na criação de seu trabalho o suficiente para ser um elemento útil no planejamento da obra, mas que ao mesmo tempo não limite a liberdade criativa?
Acredito que a Jornada do Herói seja importante. O cinema a utilizou inúmeras vezes e foi bem sucedido em muitas delas em outras não. É importante provavelmente considerar a Jornada do Herói como uma orientação estrutural. Saber onde está o primeiro andar de sua história e o sétimo, acredite é algo que você vai querer saber enquanto escreve. Se perder em divagações e parecer ter perdido o rumo tanto do enredo como de personagem é algo muito comum em escritores novatos e mesmo mais experientes. Acredito que a Jorna do Herói é muito útil para voltar e ajustar o rumo do protagonista, com esses pontos de ancoragem citados acima. E acredite que isso pode ser uma bússola formidável na selva em que pode se meter. Uma coisa importante e que deve ser a essência do funcionamento dessa estrutura é que ela parece muito com a vida, ou com um projeto pessoal em si. Mas também usá-la na forma clássica, sem nenhuma mudança pondo a estrutura a frente de novas possibilidades pode tornar a história engessada. É possível “brincar” com a “anatomia” da Jornada do Herói fazendo variações que ainda assim mostram um arco de progresso. Lembre a imaginação em primeiro lugar, mas o cérebro criativo também precisa de orientação, e essa é uma boa estrutura para se guiar e uma das mais bem sucedidas ao longo do tempo. Está em toda parte e as vezes com modificações que a torna mais versátil e “elástica”. Então se estiver perdido recomendo fortemente a “Jornada do Herói”, como guaia estrutural.
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parte do texto foi extraído do livro A Bíblia do Escritor - Alexandre Lobão