Com seu estilo seco e seu detetive loser, Raymond Chandler tem muito a ensinar sobre a escrita de ficção no romance Adeus, minha querida
Veja bem, Adeus, minha querida poderia ser mais um romance policial. Um assassinato, um detetive e um assassino – o tripé básico da ficção policial clássica, mas não é. Porque foi Raymond Chandler quem escreveu. E não à toa o detetive Philip Marlowe é lembrado até hoje como um dos mais importantes da ficção policial. Acreditamos nele. Porque ele é humano, um loser (perdedor), que vai investigar a cena de um crime e consegue ser apanhado e, por consequência, apanhar pra burro.
O Chandler foi um cara que fez o Falcão Maltês, do Dashiell Hammett, de Bíblia e, apesar de ter começado publicando em revistas pulps, elevou o nível da ficção policial, criando tramas possíveis. Crimes em pequenas cidades controladas por quem detém o poder e opera num submundo que todos nós sabemos que há.
Adeus, minha querida (Alfaguara, 2016)
É o caso deste Adeus, minha querida. Temos Philip Marlowe sendo carregado bar a dentro por um criminoso que fugiu da cadeia. O bar específico é onde o fugitivo esperava encontrar a mulher com quem se relacionava anos atrás, antes de ser preso. Um crime acaba acontecendo, obviamente. Marlowe se vê envolvido, mas consegue escapar. Escapar para cair em outra enrascada. É chamado pelo telefone à casa de um rico. O cara propõe contratá-lo para ir junto com ele em um encontro naquela mesma noite. No encontro, resgatará com oito mil dólares o colar roubado de uma amiga por uma quadrilha especializada em joias. Sem grana, o detetive aceita a furada. E, claro, tudo ocorre como ele menos espera.
Não vou revelar mais da trama. Só vou explicar o porquê do título deste texto: Raymond Chandler ser leitura obrigatória para quem quer escrever.
Apesar da inegável habilidade de compor as tramas de seus romances, o que me salta aos olhos quando o leio é sua técnica de diálogos. Mesmo na tradução, as falas continuam vivas. Quem quer escrever, não deve apenas lê-los, mas dissecá-los e estudá-los. Entender como constroem a personalidade dos personagens. Eis um excerto de Adeus, minha querida:
“[…] O prefeito está cuidando disso tudo, e trocando as calças de hora em hora, enquanto a crise durar.” “Você precisa mesmo dizer esse tipo de coisa?” “É o toque shakespeariano. Vamos dar uma volta. Depois de mais um drinque.” (pg. 269)
Philip Marlowe vinha explicando o que havia ocorrido a Anne Riordan. E, após um monólogo de quase uma página, faz um comentário sarcástico sobre o prefeito. Anne, que se mostra a fim do detetive no decorrer de todo o livro, reprova a fala dele. Marlowe, por sua vez, usa ironia e casualidade em sua fala final, o arremate da cena.
É conciso e perfeito. Funciona.
Nesta edição publicada pela Alfaguara (2016) de Adeus, minha querida, temos algumas cartas do escritor ao final da obra. Em carta para Frederick Lewis Allen, editor da Harper’s Magazine, Raymond Chandler situa a importância dos diálogos em sua escrita:
[W. H.] Auden me deixou perdido e tateando no escuro. Seu artigo sobre as histórias de detetive é brilhante, àquela maneira fria e clara dos clássicos. Mas por que me puxar para dentro dele? Eu sou apenas um cara que promoveu algumas noveletas à publicação em forma de livro. Como diabos hei de estar preocupado com a história de detetive como uma forma de arte? Tudo o que estou buscando é uma desculpa para certos experimentos em diálogos dramáticos. Para justificar a presença deles, preciso de enredo e de situação, mas fundamentalmente não ligo muito para as duas coisas. O que ligo de fato é para aquilo que Errol Flyn chamava “a música”, as falas que ele devia pronunciar. (pg. 299)
Fato é que seus “experimentos em diálogos dramáticos” o elevaram ao patamar de um dos maiores escritores de ficção policial da história. E Adeus, minha querida pode ser uma boa porta de entrada em sua obra.